23/06/2011

Quando o inverno canta jazz

♪ ao som de: Norah Jones_One Flight Down ♪


Basta as primeiras lufadas de um ventinho mais gelado soprar em nossas orelhas e arrepiar nossos pêlos assim, em qualquer dia, que a vida adquire um outro ritmo.

Mas, quando se sabe, se sente, se avista que o friozinho de cada ano já se anuncia, quer seja ele de Minuano ou não e se achega de mansinho na divisa dos meses... seis pra lá e seis pra cá, se misturando ainda em ares de outono ou do inverno recém chegado, aííííí siiimmm a percepção aguça e a vida adquire mesmo não somente outro ritmo, mas outra cor, calor e as histórias começam a saltar dos baús das bocas.

Fica outro balanço no ar no balançar dos dias e das noites e o embalo se dá principalmente no lado de dentro da gente - Acontece muito mais além que do lado esquerdo do peito, dando uma nova cadência ao tempo.
Tudo quer estar mais perto, quer ficar mais junto e o compartilhar, além do sol, ganha mais força, acredito que em todos.
Os detalhes não passam tão desapercebidos como em outras estações e o céu azul azulzinho, ainda que o sol queime as peles e as cucas e se deite cedo... tempos assim, de friozinho, nos traz a sensação das horas passarem mais devagar, tornando tudo ao nosso redor mais sonolento.

Há uma paz morna abrigada nos ventos de tempos assim em que o inverno parece cantar Jazz.

Os animais hibernam dentro de seus próprios casulos ou nas calçadas de cimento cru, as plantas crescem mais devagar e as nuvens aparentam ser migalhas de pão.
As mãos, procuram abrigo nos bolsos das calças, nas luvas de tricô, por entre os braços de quem se caminha ao lado em ruas estreitas da cidade, praças, alamedas e banquinhos ao sol da manhã e na hora do almoço... E por mais que as luvas, cobertas, meias e casacos deixem os guarda-roupas, ainda com poeira de sonhos passados do inverno que já se foi e tragam um cheiro de mofo camuflado em perfumes doces, em tempos assim, nossos dias tem um jeito todo especial de se revelarem e se mostram ser chaleiras e bules borbulhando na chama do fogão que, se for de lenha, deixa na gente o melhor sabor que o inverno tem.

É, a vida acontece lânguida e se espreguiça em qualquer som de acorde, antes mesmo de abrir os olhos.

Lá fora, os galhos nus e as folhas que ainda restam nas árvores, coreografam um balé mais singelo e balançam em compassos aparentemente ensaiados, uma espontaneidade mais que sutil que dança pra lá e pra cá se tornando imperceptível a um olhar mais grosseiro e apressado.
Os cachecóis esvoaçam nos pescoços das donzelas as suas cores, ora neutras e discretas, ora arco-íris vivos e berrantes pra espantar mesmo o gelo na íris de qualquer olhar que passar por perto.

Em tempos assim, os sorrisos emergem quentes dos abraços e os abraços, duram mais e dividem mais calor. É de mansinho que o dia corre!
A nostalgia senta à mesa, atraída pelo perfume do bolo recém assado com o chocolate quente e a xícara de chá... Da sopinha mais à noite, as torradas e bolachas salpicadas são “crotons” de saudades que despertam e nos aquecem o corpo e as lembranças.

A madrugada pinta o céu negro com sardinhas estelares e reluzentes, saudando os que madrugam para trabalhar e ainda sonolentos, se encolhem nos bancos de ônibus para se acolher de volta nos sonhos interrompidos pelo despertador.
Não se quer mesmo acordar, não se quer levantar, muito menos saborear os sorvetes de frutas nem se refrescar nas águas cloradas das piscinas. Não se quer o ar condicionado nem o ventilador como companhia. Mas sabe-se que em tempos assim, um livro faz milagres pra driblar a solidão.
E se quer somente embalar mais um punhado de sonhos por debaixo da coberta que aquece muito mais que os nossos pés.
Se quer somente dar e receber calor, na mesma intensidade em que se quer esquecer que em alguns dias de tempos assim, a dor que se tem se torna maior.
Só se quer reunir os amigos mais queridos em torno de uma fogueira com boas conversas e um som de violão.

Em tempos assim, quando os ventos que açoitam brandamente e coram as bochechas das peles mais branquinhas, os netos ouvem histórias e os pais saem para comprar agasalhos rosas e azuis aos seus filhos que mal deram ainda os seus primeiros passos.
Se coloca mais lenha no fogão, na lareira, na fogueira e a batata, começa a assar.

Os edredons cobrem as camas onde o calor da pele dos corpos que dormem juntos já queimaram o colchão no calor de uma outra estação.

Mas agora, se entrelaçam os pés e os braços se abraçam sobre um peito que também bate mais calmo e ritmado.
Os casais dormem de “conchinha” e o cinema se faz no escuro do quarto com um dvd ou na sala do apartamento.

Em tempos assim, pare pra ouvir: as pipocas estão a mil pulando nas panelas, como criança que faz “poli chinelo” pra se esquentar na hora.

O doce preferido é feito com a receita de anos guardada no livro de receita da sua mãe e que foi passada de geração a geração.
Os banhos são mais demorados, acompanhados ou não.
Os vinhos são abertos e adoçam o paladar de um momento mais íntimo e mais terno.
O amor que se faz, se faz de mansinho com maior cumplicidade... sem deixar de ser intenso.
Os carinhos e os gestos mais simples duram mais, mesmo depois que se findam e se faz planos em qualquer lugar, como numa cadeira de balanço sob o sol com um livro na mão.

Amantes são mais amigos e amigos, se amam melhor.

Em tempos assim, se caminha e se observa melhor os passos dados.
Se reflete mais no que se quer e se reconsidera coisas que já se quis... enfim se descobre que paciência e tolerância são coisas completamente diferentes, mas que se confundem e nos confundem.
Os espaços se estreitam e as geadas por entre as plantações de sonhos os tornam mais maduros, invés de queimá-los.

Em tempos assim, esperança ainda floresce, amor ainda é a melhor fonte de calor, seja ele de qualquer natureza, sem qualquer nomenclatura e... caso o seu agasalho, a sua luva ou coberta não forem o suficiente, abraço é ainda o melhor cobertor pra se manter aquecido, em tempos assim, em que o frio que se espera fazer, se faça somente do peito pra fora.

Imagem: Lúcio André Vérniz
SAMARA BASSI

15 comentários:

  1. Que lindo texto,Sam!

    O amor é uma linda "roupagem" para nos aquecer essa fria estação! Lindo tudo! beijos,chica

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  2. ...não dá para sentir o inverno
    enquanto estivermos pertinho
    de tí, flor de inspiração!!

    não dá...

    eu adoro você, dona Samara Alma Linda!

    bjokas mil!

    ...estou como 'anônima'
    por não conseguir comentar
    de outra forma.

    carinhos da Vivi/Infoco

    rsrs

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  3. Samara,

    Que texto espetacular!
    Eu AMO o inverno e tudo o que ele trás de bom para nossas vidas: o aconchego, o carinho, o companheirismo, a intimidade.
    Só quem vive no frio sabe o quão bom é viver assim...os amores são mais intensos, as famílias são mais unidas, a vida corre mais próspera!
    Muito TRI o teu texto!

    Beijinhossssss

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  4. Bom dia menina!
    Que linda descrição do inverno.
    Repleto de calor e carinho.
    abração

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  5. Flor e ser, amor e calor... cobertor!

    Vim LER, vin.ver.no arena!

    :o)

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  6. Sam , eu fui começando a ler e já imaginando que esse texto tinha um jeitinho seu de escrever. Fazer com posia uma poesia mais linda e fazer da prosa uma poesia linda também é coisa da Sam(imaginei).

    Eu gosto muito pouco do frio, mas acho o inverno a estação mais charmosa que temos. A começar pelos dias muito bonitos, pelas pessoas elegantes, pelos ardores maiores nos nossos desejos, pelas comidas mais fumegantes e temperadas com mais capricho. Muito gostoso , inclusive ler isso nesta manha de segunda gelada, mas que me deu um aconchego danado de bom. Meu abraço. Paz e bem.

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  7. um cobertor em palavras, aquece bem a alma

    beijos

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  8. Prezadíssima poetisa/escritora SAMARA!

    Delicioso e 'aconchegante' escrito...
    Coincidentemente ainda HOJE fui 'repreendido' por minha queridíssima companheira de 38 anos acerca de gostar do frio, ao acariciar o seu rosto com minha mão gelada!
    Foi uma repreensão gostosíssima nessa estação. Ela nos prepara pipoca, ela nos prepara chocolate quente, ela nos prepara canjica regada a paçoca, ela nos prepara bolo de milho e , acima de tudo, ela nos prepara muito calor com sua afeição!
    Claro que as outras estações, via de regra, apresentam um maior dinamismo externo, com as pessoas deslocando-se pelas ruas, pelos shoppings, pelos parques, pelas praias... 'pela aí'...rs,rs,rs
    Bendito inverno, que nos possibilita, como disse com muita propriedade nossa especialíssima SAM, um maior aconchego familiar, entretenimentos internos que só alavancam mais e mais nossas querências...
    É minha opinião, pô! rs,rs,rs
    Abçs...
    Tudo de bom SEMPRE, fiquem com Deus SEMPRE e, até de repente!

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  9. E o inverno chega assim tão enriquecido de palavras cobertas de filosofias e esquentam a nossa alma enveredando o nosso cérebro por prazeres da leitura de uma crônica bem feita e textualizada por uma colcha de retalhos costuradas pelo desafio da leitura. Parabéns, Samara Bassi, e a música transmitiu calor nesta noite fria da minha Piracicaba. Abraços Poéticos desta CaipiracicabANA Marly de Oliveira Jacobino

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  10. Minha flor que encanto de texto!
    Ao som dessa linda música está tudo amada.
    Esse jeito doce, essa maneira bonita de ser, amiga querida és especial.
    Parabéns tudo tão lindo aqui.

    Beijinho Sam

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  11. Adorei ler-te!

    Beijos e saudades!!!
    AL

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  12. Nunca gostei do frio, Samara. Ninguém conseguia me convencer de que nessa estação existia beleza. Admitia que nos deixa mais charmosos, sendo este o estilo aprazível. E deu!
    Mas vc...vc derreteu o gelo dessa lei, a cada sentença - algo começou a aquecer aqui por dentro, e, surpresa das surpresas, eis-me aconchegada na tua escrita, aquecida, até que enfim, nessa estação fria - a ternura fez as vezes do edredom, enquanto teu talento maravilhoso com as palavras declinou-me da ideia que congelara num conceito antigo...obrigada por desfazer esta rigidez! O valor do que se escreve, penso eu, está no quanto toca a quem lê...sinta-se dona de um tesouro.

    Beijo

    *Não bastasse, a música embalou de vez os sentimentos novos. Parabéns pela escolha perfeita!!!

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  13. Sam,
    passando para te ler novamente.
    É sempre bom guardar preciosidades.

    Beijinho minha flor.
    Fernanda

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